VOTAÇÃO DO CONCURSO DE CONTOS "Escombros"
Apresentamos o conto "Escombros" do autor Sérgio Bernardo
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ESCOMBROS
—
Saio, não, Inácia.
Com
essa decisão verbalizada, pernas magras se arrastando pelas lajotas seculares,
a velha vai abrir o baú.
—
Leve esses dobrões e venda – ela estende uma sacola de feltro. — Alugue um
quartinho e vá comendo até chegar a sua hora. Eu fico.
A
negra Inácia calada, o ouro reluzindo entre os panos da trouxa, dá a derradeira
espiada no aposento e no rosto da patroa. A lágrima única escapa do choro que
brota ao contrário: escorre por dentro.
“Diabo de velha teimosa”, pensa, porque a
inconformidade não tem coragem de sair pela boca. Sai depressa e fecha a pesada
porta, como pondo um ponto final em 80 anos de sua vida.
Laura
de Sá fez 92 anos, idade mais que suficiente para, digna e resoluta, apenas
olhar pelo janelão a ex-escrava Inácia descendo a ladeira ao lado de uma gente
pobre, à frente de bestas de carga e carroças que levam móveis e utensílios. É
o último grupo de moradores — os mais resistentes — a ser retirado. Após o
meio-dia subirá a guarda para a inspeção final.
De
novo debruçada sobre o baú, apanha a espada. Passados três séculos e meio, ainda
brilha e assusta a lâmina que trespassara índios e flibusteiros na conquista da
Baía de Guanabara. Agora a relíquia sumirá com ela e tudo em volta.
“Não te respeitaram,
guerreiro, e muito menos a História...” – rumina enquanto vai polindo
o metal. “Corja de inescrupulosos...
bando de sacrílegos... canalhas!”
De
uns tempos pra cá, deu de maldizer assim, amarga. “Bom que chegue o fim.”
Na
cristaleira, junto à jarra branca de porcelana, repousam os tantos mil-réis com
os quais comprará o silêncio do soldado em vistoria no casarão. Na trempe, a
sopa ainda está fumegando. Estranhíssima a iminência da última refeição. Lembra
os condenados à morte: “Comer para quê? Para
que, ainda por cima, um último desejo?” Nega-se o prato quente de
misericórdia que a velha Inácia deixou pronto minutos antes de partir. E um
último desejo, pudesse ter, seria ver o prefeito Carlos Sampaio cozinhando nas
chamas do inferno.
Espreguiçando-se,
de repente a gata sai de trás do fogão, pula para o colo da velha, que sentou à
cabeceira da grande mesa onde depositou a espada. O pelo é macio e limpo. Ela o
afaga por um tempo que será quase todo o restante da sua vida, e a bichana
dorme.
—
Tem alguém aí? – a porta se move nas dobradiças gastas. — Ei, senhora, não foi
com os outros?! É preciso que venha comigo já! Barbaridade a terem
abandonado... Já cercaram todo o morro com dinamite. Eu ajudo, venha...
—
Saio, não, meu filho – ela se ergue, os olhos dela mostrando-se duros. — Aqui
nasci, aqui nasceram meus pais e avós, aqui meu tataravô assentou a primeira
povoação desta cidade do Rio de Janeiro, consagrada a São Sebastião...
Benze-se.
—
A casa tem quase trezentos anos, a igreja ali em cima é ainda mais antiga... Se
vai abaixo o Morro do Castelo, acabando com a memória dos de Sá, escolho morrer
junto. Ademais, tenho idade, filho, e a vida lá embaixo não é para mim. Pegue
esse dinheiro que está aí na cristaleira. É bastante. Diga que na revista final
não viu ninguém.
Ele
ameaça um passo, indeciso se a pega à força ou não.
—
Não! Fique aí! Essa espada que pertenceu a Estácio de Sá tem ainda um fio capaz
de lhe cortar o pescoço...
Com
um golpe preciso (talvez nascido da vontade férrea e da herança do sangue
guerreiro) a velha corta no ar linguiças penduradas sobre as trempes, provando
ter réstia de força para sangrar um homem.
—
Essa gata sobre a cadeira, leve-a junto.
O
guarda pensa mais um instante. Muito breve. “Meu
soldo é um nadinha. Ela que quer morrer...” Vem e abraça o bicho, mete os
mil-réis na algibeira.
—
Bruxa louca! – xinga e sai, trancando a porta a chave, conforme o capitão
instruiu como sinal da vistoria feita.
A
velha permanece no lugar, triste, não por ela, que nada tinha contra a vida até
o fiscal da prefeitura ter vindo há alguns meses com a ordem de despejo.
Triste, e muito, por saber o Morro do Castelo prestes a ser demolido,
sepultando um rosário de lendas e memórias, diversas construções históricas e
relíquias como a espada que foi do fundador da capital da república, neste ano
da graça de 1922.
Do
janelão assiste à debandada dos soldados. Ao longe, olha o Morro Cara de Cão,
que dizem ser o verdadeiro marco da fundação do Rio de Janeiro.
“Qual o quê!” – ironiza
para consigo. “Vosmicê aí, intocável,
debochando dessa pedra de cá, condenada...” O pensamento é senil e a velha até
sorri...
Milhares
de segundos e ela no mesmo lugar, mirando a paisagem, que não endossa a justificativa
do prefeito, publicada nos jornais: “A
demolição do Morro do Castelo é necessária a fim de deixar mais fresco o ar nas
áreas centrais”.
No
sopé um soldado com uma gata ao colo se recusa à primeira detonação. Mas ela
acontece...
A explosão estoura os tímpanos de Laura.
Tudo em torno vira uma nuvem de fumaça, o chão de lajotas engole seus pés, na cabeça
pisca a última indignação:
“Alguém
vai achar a espada nos escombros...”